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  • O que é Viés e Como Ele Destrói a Validade dos Resultados

    Risco do Viés na ciência
    Viés

    Mesmo estudos bem planejados podem ser comprometidos por distorções sutis no método, na amostra ou na análise. Por isso, compreender o que é o viés e como ele atua é essencial para quem deseja produzir ou interpretar ciência de forma confiável.

    A ilusão de um resultado confiável

    Você já se perguntou por que dois estudos sobre o mesmo tema chegam a conclusões opostas?
    Por que um artigo afirma que determinado medicamento é eficaz, enquanto outro diz o contrário?
    Em muitos casos, a explicação não está nos dados em si, mas na forma como esses dados foram obtidos.

    Um estudo pode parecer tecnicamente impecável, mas esconder um inimigo silencioso: o viés.

    O viés — ou bias, em inglês — é uma tendência sistemática que distorce os resultados de uma pesquisa, afastando-os da realidade. (1)
    Ele pode surgir em qualquer etapa do processo científico, desde a seleção dos participantes até a análise estatística. (6)

    E o mais preocupante: quanto mais refinado o estudo parecer, maior o risco de que o viés passe despercebido.
    Neste texto, você vai entender como o viés destrói a validade de uma pesquisa, quais são os principais tipos e como identificá-lo e reduzi-lo — inclusive fora do ambiente acadêmico, onde a pseudo-ciência usa a aparência de credibilidade para enganar o público.

    Esse tema sempre me fascinou. Inclusive, desde 2011 escrevi um artigo específico sobre viés em pesquisas (9), mostrando como falhas no delineamento dos estudos podem comprometer conclusões clínicas e práticas odontológicas baseadas em evidências.
    A partir dessas reflexões, percebi que o problema do viés vai muito além de uma área específica — ele está presente em praticamente todas as etapas da produção científica e em diferentes campos da saúde.

    Risco do Viés
    Risco do Viés

    O que é viés — e por que ele é tão perigoso

    Em metodologia científica, o viés é um erro sistemático: uma distorção constante que leva os resultados a apontarem para uma direção específica. Isso o diferencia do erro aleatório, que acontece por acaso e tende a se equilibrar quando o tamanho da amostra aumenta.

    Para entender melhor, imagine um termômetro descalibrado que marca sempre 2 °C a mais do que a temperatura real.
    Você pode medir dezenas de vezes — o valor médio será preciso, mas consistentemente errado.
    É exatamente isso que o viés faz com os resultados de uma pesquisa.

    Em contrapartida, o erro aleatório é como uma variação natural das medições — ora para cima, ora para baixo — que tende a se compensar ao longo do tempo.

    Portanto, um estudo enviesado pode parecer muito preciso, mas estará precisamente errado.

    Erro ≠ Viés: entenda a diferença

    Embora ambos possam ser chamados de “erros”, eles têm naturezas diferentes e consequências distintas.

    • Erro aleatório: é imprevisível e ocorre por acaso. Ele aumenta a variabilidade, mas tende a se anular em grandes amostras. Por isso temos que calcular o tamanho da amostra. Quanto maior o tamanho da amostra, menor o risco de erro.
      Exemplo: medir a pressão arterial de uma pessoa várias vezes e obter resultados ligeiramente diferentes a cada medição. (7)
    • Viés (erro sistemático): é previsível e constante. Ocorre quando algo no delineamento do estudo faz com que os resultados se desloquem sempre para um lado.
      Exemplo: um aparelho de pressão descalibrado que marca sempre 5 mmHg acima do valor real, como já comentamos.

    Resumindo:

    • O erro aleatório afeta a precisão (quanto os resultados variam).
    • O viés afeta a exatidão (quanto os resultados se aproximam da verdade).

    Ou, de forma simples: todo viés é um erro, mas nem todo erro é um viés. Essa distinção é fundamental, pois erros aleatórios são inevitáveis, fazem parte da natureza da pesquisa.
    Já os vieses podem e devem ser prevenidos, pois ameaçam diretamente a validade dos resultados.

    Principais tipos de viés

    O viés pode assumir muitas formas, dependendo da etapa do estudo.
    A seguir, veja alguns dos mais importantes — e comuns — na pesquisa em saúde. (8)

    Viés de seleção

    Ocorre quando os participantes não representam adequadamente a população-alvo.
    Exemplo: um ensaio clínico sobre hipertensão que exclui idosos ou pacientes com comorbidades pode superestimar a eficácia do medicamento.

    Viés de aferição (ou mensuração)

    Surge quando há erro na forma de medir as variáveis.
    Exemplo: usar instrumentos diferentes para medir a pressão arterial em grupos distintos.

    Viés de confusão

    Acontece quando uma variável não controlada influencia tanto a exposição quanto o desfecho.
    Exemplo: associar consumo de café a doenças cardíacas sem ajustar para o tabagismo.

    Viés de atrição

    Surge quando há perda significativa de participantes durante o acompanhamento.
    Se os pacientes que abandonam o estudo são justamente os que não responderam ao tratamento, o efeito final parecerá melhor do que realmente é.

    Viés de publicação

    Pesquisas com resultados “positivos” têm mais chance de serem publicadas, distorcendo o corpo de evidências disponível.
    Dessa forma, meta-análises que consideram apenas estudos publicados tendem a superestimar os efeitos. Por isso é importante incluir a literatura cinzenta, caso você esteja fazendo uma revisão sistemática.

    Ferramentas da Cochrane para avaliar o risco de viés

    A Cochrane, referência mundial em revisões sistemáticas, desenvolveu ferramentas padronizadas para avaliar o risco de viés em diferentes contextos da pesquisa científica.
    Antes de aplicá-las, porém, é fundamental entender quem usa cada uma e em que momento do processo elas são mais úteis.

    Para quem está realizando um ensaio clínico

    O pesquisador que está conduzindo o experimento — planejando, randomizando e coletando dados — precisa conhecer o viés para preveni-lo.
    Nessa fase, as ferramentas da Cochrane funcionam como um roteiro de qualidade metodológica, ajudando a desenhar um estudo robusto desde o início.

    Por exemplo, definir claramente como será feita a randomização, garantir cegamento duplo e padronizar medidas de desfecho são práticas que previnem os principais vieses avaliados pela Cochrane.


    Para quem está lendo um artigo científico

    O leitor crítico — seja estudante, clínico ou pesquisador — usa o conhecimento sobre viés para interpretar o quanto pode confiar nos resultados de um estudo.
    Saber identificar vieses ajuda a responder perguntas como:

    • Os grupos eram comparáveis?
    • Houve cegamento dos avaliadores?
    • As perdas de seguimento foram equilibradas?

    Em síntese, essas reflexões são essenciais para quem pratica saúde baseada em evidências, pois permitem distinguir entre um resultado confiável e um resultado duvidoso.


    Para quem está fazendo uma revisão sistemática

    Tipo de viés: risco alto, médio ou baixo
    Tipo de viés: risco alto, médio ou baixo

    Nesse caso, o pesquisador precisa de um método padronizado e transparente para avaliar a qualidade dos estudos incluídos.
    É aqui que entram as ferramentas específicas da Cochrane: a RoB 2 e a ROBINS-I.

    RoB 2 (Risk of Bias 2)

    A RoB 2 é usada para ensaios clínicos randomizados.
    Ela avalia o risco de viés em cinco domínios: seleção, performance, detecção, atrito e relato.
    O julgamento final pode ser de baixo risco, alto risco ou algumas preocupações, permitindo ao pesquisador ponderar o peso de cada estudo na síntese final da revisão sistemática. (3)

    ROBINS-I (Risk of Bias in Non-randomized Studies — of Interventions)

    A ROBINS-I avalia o risco de viés em estudos não randomizados, como coortes e caso-controle. (2)
    Ela considera fontes de confusão e o contexto das intervenções, adaptando seus domínios conforme o tipo de estudo.
    Assim, torna-se essencial quando a revisão inclui estudos observacionais, pois permite comparar o grau de confiabilidade entre diferentes desenhos de pesquisa.

    Essas ferramentas, amplamente utilizadas pela Cochrane e pela Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (REBRATS), reforçam a importância de uma avaliação crítica e transparente — tanto para quem lê, quanto para quem realiza ou sintetiza estudos. (4)

    Viés também está nas redes: quando a pseudo-ciência veste jaleco

    Pseudo ciência?
    Pseudo ciência?

    Nos dias de hoje, o viés não está apenas nos estudos científicos, mas também na forma como a ciência é comunicada e explorada comercialmente. (8)
    Todos os dias, surgem vídeos e anúncios que prometem curas milagrosas, suplementos “com base em estudos científicos” ou terapias “comprovadas por Harvard” — e quase sempre, nada disso é verdade.

    Esses conteúdos usam uma tática perigosa: apropriam-se da linguagem científica para gerar credibilidade.
    Apresentam “pesquisas” sem contexto, citam artigos fora do escopo ou mencionam revistas respeitáveis de forma superficial — tudo para convencer o público a comprar um produto ou acreditar em uma solução simplista.

    Quando alguém verifica as referências apresentadas, descobre que as citações não têm relação direta com o que está sendo vendido.
    São textos sobre outros temas, estudos com metodologia fraca ou pesquisas preliminares em animais usadas para sustentar promessas em humanos.

    Esse é um tipo moderno de viés de comunicação científica, que mistura meias-verdades com jargões técnicos para criar uma ilusão de evidência.
    E ele é tão perigoso quanto o viés metodológico — porque mina a confiança na ciência real e desinforma tanto profissionais quanto pacientes.

    O papel dos profissionais de saúde

    Credibilidade científica
    Credibilidade científica

    Como educadores e multiplicadores de conhecimento, os profissionais de saúde têm a missão de traduzir ciência de forma responsável. Ensinar pacientes e colegas a reconhecer sinais de má ciência é tão importante quanto aplicar boas práticas clínicas. (6,7)

    Afinal, a verdadeira ciência não precisa de suspense, mistério ou marketing.
    Ela se sustenta pela coerência dos dados, pela reprodutibilidade e pela transparência.


    A honestidade metodológica é a base da boa ciência

    Todo pesquisador comete erros, mas o verdadeiro cientista é aquele que reconhece suas fontes de viés e trabalha para minimizá-las. Mais do que dominar estatísticas, fazer ciência baseada em evidências é um exercício de honestidade intelectual, rigor metodológico e responsabilidade ética.

    O viés não é apenas uma falha técnica: é uma ameaça à confiança pública na ciência.
    E quando ele aparece disfarçado de “conteúdo científico” nas redes, torna-se ainda mais perigoso.
    Por isso, combater esse fenômeno é um ato de responsabilidade social e profissional.

    A integridade científica começa com o olhar crítico — e se estende à forma como comunicamos e aplicamos o conhecimento.
    Porque a ciência verdadeira não precisa de truques: ela precisa de transparência, método e compromisso com a verdade.

    Referências Bibliográficas

    1. Higgins JPT, Thomas J, Chandler J, et al. Cochrane Handbook for Systematic Reviews of Interventions, Version 6.3 (updated Feb 2022). Cochrane, 2022.
    2. Sterne JAC, Higgins JPT, Reeves BC, et al. ROBINS-I: a tool for assessing risk of bias in non-randomised studies of interventions. BMJ. 2016;355:i4919.
    3. Cochrane Collaboration. Risk of Bias Tools (RoB 2 and ROBINS-I). Disponível em: https://www.riskofbias.info.
    4. Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (REBRATS). Guia Metodológico de Avaliação de Tecnologias em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde; 2023.
    5. Schulz KF, Altman DG, Moher D, CONSORT Group. CONSORT 2010 Statement. BMJ. 2010;340:c332.
    6. Guyatt GH, Rennie D, Meade MO, Cook DJ. Users’ Guides to the Medical Literature. 3rd ed. McGraw-Hill; 2015.
    7. Greenhalgh T. How to Read a Paper. 6th ed. Wiley-Blackwell; 2019.
    8. Ioannidis JPA. Why Most Published Research Findings Are False. PLoS Med. 2005;2(8):e124.
    9. Ferreira CA, Loureiro CAS, Saconato H, Atallah AN. Assessing the risk of bias in randomized controlled trials in the field of dentistry indexed in the LILACS database. São Paulo Med J. 2011;129(2):85–93.